sexta-feira, 4 de setembro de 2009

POVOS INDIGENAS
São 206 os povos indígenas no Brasil de hoje. Na maioria sociedades diminutas, remanescentes de populações que já foram consideráveis, destruídas por doenças, escravização, massacres, invasão de seus territórios, deportação, programas de assimilação: mais de dois terços desses grupos não chegam hoje a mil pessoas. No total, são uns 280 mil índios, contando-se apenas os que moram em áreas indígenas. Outros 30 mil são índios desaldeados, que moram na maioria em áreas urbanas. A população indígena concentra-se na Amazônia, onde moram cerca de 60% dos índios brasileiros.
As sociedades indígenas são muito diversas entre si. Vejam-se as línguas, por exemplo. Distinguem-se 163 línguas indígenas diferentes. Se incluirmos os dialetos, esse número sobe para 195. Com exceção de dez línguas isoladas, que não se aparentam com nenhuma outra, essa grande variedade de línguas pode ser agrupada em 14 conjuntos. Quatro grandes grupos lingüísticos espalham-se por territórios amplos, que podem transbordar das fronteiras nacionais: são os grupos Macro-Tupi, Macro-Jê, Aruak e Karib. Os troncos lingüísticos Macro-Tupi e Macro-Jê agrupam mais de 20 línguas cada um.
Dez grupos lingüísticos territorialmente mais compactos e quase todos da periferia da bacia amazônica reúnem um número menor de línguas: são as famílias Arawá, Txapakúra, Pano, Guaykuru, Nambikwára, Mura, Katukina, Yanomami, Tukano e Maku. As línguas isoladas, dez ao todo, são em geral faladas por pequenos grupos. Mas uma delas é falada por um dos maiores grupos indígenas brasileiros, os Tikuna, que reúne 20 mil índios. Muitas línguas se perderam neste século e outras estão a ponto de se perderem. Assim, os Pataxó Hã-hã-hãe, do sul da Bahia, pediram a lingüistas e antropólogos que elaborassem um vocabulário com a última falante de sua língua. É na região Leste e Nordeste do País que mais línguas se perderam, em parte fruto de preconceito e de políticas assimilacionistas. Hoje, pela Constituição brasileira, o ensino em áreas indígenas deve ser bilingüe.
A diversidade das sociedades indígenas - cada uma sendo uma síntese original de sociabilidade e de uso dos recursos naturais - é um patrimônio essencial do Brasil. O que talvez mais chame a atenção seja o contraste entre a simplicidade das tecnologias e a riqueza dos universos culturais. As sociedades indígenas elaboraram cosmologias e sistemas sociais complexos, nos quais o patrimônio imaterial parece ter um privilégio sobre o patrimônio material. Enquanto a propriedade privada da terra, por exemplo, é inexistente, direitos sobre bens imateriais, tais como nomes próprios, cantos, ornamentos rituais, são objeto de detalhada regulamentação. A arte indígena, por sua vez, parece preferir suportes perecíveis: em muitas dessas sociedades, o corpo humano, a palha e as plumas são objeto de um trabalho artístico intenso - pintura corporal, cestaria, arte plumária - sobre objetos essencialmente efêmeros.
As sociedades indígenas são diminutas, como vimos, e dão uma impressão errônea de isolamento. Na realidade, elas têm crescentemente se revelado ligadas a uma extensa rede de trocas - de mercadorias, de esposas, de cantos e rituais - e abertas ao exterior. Exemplos importantes são as sociedades do Alto Xingu e as do Alto Rio Negro. No Alto Xingu, vários grupos indígenas falando línguas de troncos ou famílias diferentes compartilham um universo cultural e estabeleceram um sistema de trocas baseado numa especialização de certa forma fictícia. Ao invés da especialização (em cerâmica, adornos etc.) ser a causa das trocas, as trocas é que derivam na sociabilidade que produz a especialização. No Alto Rio Negro, em um processo análogo, grupos de línguas diferentes devem casar entre si, e maridos e mulheres não falam a mesma língua. Já se interpretaram os pequenos efetivos demográficos das sociedades indígenas das terras baixas da América do Sul como uma adaptação a ecossistemas com escassos recursos, mas hoje esse determinismo ecológico está caindo em desuso. Está se percebendo, ao contrário, que, em certas áreas pelo menos, o fracionamento das sociedades indígenas seria um produto da história mais do que do meio ambiente, e que muitos dos grupos que hoje são caçadores-coletores teriam sido agricultores em outras épocas. Outros antropólogos ligaram o tamanho das sociedades indígenas das terras baixas a um deliberado projeto igualitário, que evitaria a emergência de um Estado ou de uma estratificação social, o que está sendo hoje posto em dúvida por arqueólogos da Amazônia que sustentam a existência de cacicados altamente hierarquizados até à época da Conquista.
A situação territorial dos povos indígenas é muito variada. Depende em larga medida do tipo de interesse econômico que apresenta ou apresentou seu território. Mas depende também do sucesso político das estratégias de defesa indígenas, área em que os Kayapó do sul do Pará têm demonstrado sua excelência. De forma geral, nas zonas de ocupação antiga e permanente, como no Nordeste, Leste, algumas regiões do Centro-oeste e Sul do País, os grupos indígenas que sobreviveram estão em geral ilhados em pequeníssimos territórios. O menor deve ser o dos Guarani Mbya, no Território Indígena Jaraguá, no município de São Paulo, com apenas 2 hectares, seguido pelo Território Indígena Aldeinha, dos índios Terena, no município de Anastácio, no Mato Grosso do Sul, com 4 hectares.
Em áreas de ocupação brutal mas efêmera, como nas áreas de produção de borracha, na Amazônia, exploradas durante meio século a partir de 1870, muitos grupos indígenas conseguiram sobreviver, embora com áreas territoriais muito diminuídas. Existem até hoje provavelmente 50 grupos de índios arredios na Amazônia, que procuram manter seu isolamento. Alguns, mas não todos, são descendentes de grupos que já tiveram duras experiências com os outros brasileiros e internaram-se de novo na mata. A cada dia, esse isolamento é mais precário: em 1995, apareceram índios no estado de Rondônia: encurralados por desmatamentos e investidas em suas terras, preferiram aceitar o contato.
Todas as Constituições brasileiras, desde a de 1934, garantem aos índios as terras que eles ocupam. Esta ocupação ficou definida na Constituição de 1988, no artigo 231, parágrafo 1, segundo o qual são terras tradicionalmente ocupadas pelos índios as por eles habitadas em caráter permanente, as utilizadas para suas atividades produtivas, as imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários a seu bem-estar e as necessárias à sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições.
As terras indígenas ainda não estão completamente regularizadas, apesar do preceito constitucional que estipulava que o fossem até 1993. Em junho de 1996, das 554 áreas, 148 encontravam-se demarcadas e registradas. Correspondem a um total de cerca de 45 milhões de hectares, ou seja, pouco menos da metade da área total das terras indígenas. Outras áreas encontram-se em fases diferentes de regularização: há desde áreas a identificar, geralmente associadas a grupos isolados, áreas delimitadas e áreas demarcadas fisicamente mas sem homologação e registro. As demarcações são necessárias mas não suficientes para a proteção das terras indígenas, que sofrem invasões de várias naturezas. Mineradoras, madeireiras, garimpeiros, fazendeiros, são fontes de inúmeros conflitos. No estado do Ceará, companhias de beneficiamento de coco invadem as terras dos índios Tremembé, e índios Tapeba vivem confinados em um mangue nos arredores de Fortaleza, em uma parcela de sua área. Em várias regiões, as grandes fazendas expulsam posseiros para dentro de terras indígenas, criando violência entre despossuídos. Obras de infra-estrutura, como estradas e hidroelétricas, também têm incidido em áreas indígenas, criando situações de grandes conflitos.
É portanto fundamental uma ação firme e vontade política do governo na proteção dos direitos indígenas. O Brasil tem uma tradição de legislação justa e generosa em relação aos índios, mas uma tradição também de desrespeito na prática a esse conjunto de leis. Os índios são, desde o Código Civil de 1916, tutelados pelo Estado brasileiro, equiparados a menores entre 16 e 21 anos. Isto significa um apoio do Estado para impedir que sejam lesados, mas freqüentemente este apoio tem se traduzido em abuso de poder. O órgão que, de 1910 a 1967 exerceu essa tutela foi o Serviço de Proteção ao Índio (SPI), que foi dissolvido em meio a denúncias de corrupção. Foi substituído pela Fundação Nacional do Índio (Funai), que também tem sido alvo de críticas, tendo sido em algumas gestões acusada de conluio, por exemplo, com madeireiras. Desde a Constituição de 1988, os índios têm reconhecida sua iniciativa judicial e contam com a proteção adicional do Ministério Público. Essa nova situação tem produzido frutos importantes.


As organizações indígenas têm crescido em importância e representatividade, apoiadas em uma rede de ONGs, de antropólogos e da Igreja Católica. É notável a presença, entre os líderes, de índios que tiveram seus primeiros contatos com outros brasileiros durante a adolescência, mas que conseguem entender seus mecanismos políticos.
Enquanto nos anos 50 e 60 previa-se o desaparecimentos dos índios, hoje se constata uma recuperação demográfica e um ressurgimento de etnias que se ocultavam diante do preconceito. Assim mesmo, ainda são - lamentam os que os consideram como empecilhos ao desenvolvimento - poucos índios para muita terra. O juízo de valores pode ser invertido, desde que se saibam avaliar os benefícios possíveis: os índios têm preservado, nas grandes áreas da Amazônia que ocupam, uma espantosa riqueza em biodiversidade e um saber acumulado cujo valor de mercado ainda não é reconhecido. A valorização adequada desses recursos - diversidade genética e conhecimentos - e uma política que permita a continuação de um modo de exploração não destruidor da natureza, podem garantir aos índios um futuro no Brasil e ao Brasil a preservação de sua diversidade cultural e natural.
Observação: os dados numéricos sobre população e terras foram agregados por Fany Ricardo, do Instituto Sócio-Ambiental, a quem agradeço aqui.
Manuela Carneiro da Cunha

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